terça-feira, 2 de março de 2010

Love & Rockets

por Katchiannya Cunha





Love & Rockets é a criação de três irmãos: Mario, Jaime e Gilbert Hernandez. Lançada há mais de vinte anos, a série começou de forma artesanal até se tornar um cult incontestável.

A idéia da publicação partiu do mais velho dos três, Mario, que convenceu os irmãos a publicarem a revista por conta própria. Enviaram então um exemplar para Gary Grouth, editor da renomada The Comics Journal e um dos mais ferinos críticos de quadrinhos nos Estados Unidos. Para surpresa do trio de irmãos, Grouth não só amou a revista como convidou os Hernandez a publicar suas histórias em um sistema mais profissional. Em 1982 saiu a primeira edição “oficial”.

Love & Rockets nunca foi um sucesso de vendas, mas acabou virando um cult quase imediato e até mesmo inspirou o nome de uma banda de rock inglês. Ironia das ironias, justo Mario, fundador da série, acabou abandonando a revista logo após os primeiros números, enquanto Jaime e Gilbert continuavam o trabalho, cada um abordando histórias e estilos completamente distintos.




Jaime criou as Locas, um grupo de garotas chicanas que vivem em um futuro recente. No começo, as histórias de Jaime tinham uma ênfase maior nos aspectos de ficção científica e aventura. Aos poucos, o lado pessoal e das relações entre as garotas se tornou o centro das tramas. As personagens principais são Margarita Chascarillo, ou Maggie, uma mecânica de foguetes de mão cheia que também é apaixonada pelo seu chefe, o mecânico Rand Race. Sua companheira de quarto e melhor amiga é Hopey, com quem Maggie tem uma relação um tanto quanto dúbia. Hopey tem uma banda de rock com Terry. Outra personagem importante é Penny Century, a fanática por quadrinhos de super-heróis e amante do milionário H.R. Castigan. Penny, visivelmente inspirada nas garotas dos famosos calendários de pin up dos anos 40 e 50, vive sempre metida em aventuras e confusões que dariam inveja à versão em quadrinhos da Betty Page. Temos também Isabel “Izzy” Ruebens Ortiz, a amiga esotérica da turma, que com o passar dos anos ficou cada vez mais estranha. Izzy por vezes serve como uma espécie de heterônimo de Jaime, uma vez que várias histórias são assinadas por ela.

Gilbert inventou a deliciosa cidade de Palomar, um lugarejo de pouco mais de 300 habitantes localizado em algum lugar da América Central. Gilbert é frequentemente comparado a Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão) e a Jorge Amado (Tieta do Agreste) na sua criação de tipos latinos. Suas personagens vivem a miséria típica do interior terceiromundista, mas também vivenciam com intensidade a vida e as paixões. É difícil tecer em poucas palavras as qualidades da obra de Gilbert, é preciso ler para entender exatamente do que falo.

Assim como nas histórias das Locas, em Sopa de Gran Peña ou Heartbreak Soup, as personagens envelhecem, se casam, têm filhos que por vezes se tornam os protagonistas das próximas histórias. E não por um acaso, muitas vezes também histrias do passado das personagens são apresentadas, construídas como uma enorme colcha de retalhos que, aos poucos, vão fazendo sentido.

O primeiro arco de histórias conta a chegada de Luba ao vilarejo. Luba é uma sensual banãdora (ela tem uma espécie de casa de banhos) que se muda para Palomar em busca de uma vida melhor para ela e para a penca de filhos que traz na barra da saia. Ela abre um estabelecimento no lugar, mas arranja certos problemas, pois a bañadora oficial do lugar, Chelo (que antes havia sido parteira), não vai deixar barato a concorrência.

Mas a história não se resume apenas à rivalidade das duas. Como num típico filme de Robert Altman ou em Magnólia, de P.T. Anderson, o que realmente temos são várias histórias paralelas que de alguma forma estão interligadas e são na verdade uma desculpa para contar como é realmente o dia-a-dia de Palomar.
Além das já citadas Luba e Chelo, outras personagens importantes neste arco são Manuel e Soledad, dois amigos de infância e completos opostos em termos de personalidade. Manuel é o típico conquistador, não perdoa um rabo de saia e não acredita em fidelidade. Por isso tudo é considerado pelos meninos da vila como uma espécie de herói. Já Soledad é o cara letrado, sempre envolvido com livros e dono de uma descomunal timidez. A medida que a história se desenvolve, fica cada vez mais claro que a amizade dos dois se destina a terminar em tragédia.

Há também as irmãs Pipo e Carmen. Pipo é a menina mais bonita e cobiçada de toda Palomar, enquanto a mais nova, Carmen, é uma menina de personalidade forte, cujo atual projeto de vida é transformar o bobalhão da vila em um perfeito Dom Juan.
O nome Sopa de Gran Peña, como Pipo explica no decorrer da história, vem de uma sopa típica do lugar que é feita e tomada apenas por aqueles que tiveram seu coração completamente destroçado.

A série já foi publicada no Brasil no início dos anos 90, pela Record, como Love & Rockets, Locas, Mulheres Perdisas e Crônicas de Palomar. A Via Lettera publicou, posteriormente, uma coletânea, Sopa de Gran Peña, retomando algumas histórias já publicadas no Brasil.

Love & Rockets - Sopa de Gran Peña ainda pode ser encontrada em algumas comic shops e vale muito (muito mesmo) a pena. Já os exemplares da Recordsão quase impossíveis de encontrar. Se vir algum no sebo, compre sem pensar duas vezes Afinal, Love & Rockets - Sopa de Gran Peña tem uma qualidade literária raramente vista nos quadrinhos, mesmo naqueles ditos alternativos. Os irmãos Hernandez não têm medo de abordar temas mais fortes e ainda o consegue fazer sem ser apelativo ou vulgar. Gilbert, em especial, consegue mesclar em uma mesma história a aridez da vida de um vilarejo pobre com momentos de ternura e sensibilidade demonstradas por um povo que, apesar de todo o sofrimento e dificuldades, tem um enorme amor à vida.