terça-feira, 7 de novembro de 2017

Speed Racer (O Filme)- Resenha


Confesso que me bateu um certo desânimo em assistir a Speed Racer. A principal razão era saber que Andy e Larry Wachowski eram os responsáveis pelo roteiro e pela direção do filme. Embora eu tenha gostado muito do primeiro Matrix e goste de algumas coisas de Animatrix, me decepcionei em demasia com Matrix Reload e Matrix Revolutions. Desse modo, encarei a adaptação do anime com o pé atrás. 

Embora eles tenham produzido e roteirizado V de Vingança, Speed Racer é o primeiro filme que dirigem desde a trilogia de Matrix. (E, antes que me perguntem, eu ainda não vi V de Vingança, em parte por falta de tempo, outra por falta de coragem, mas agora, pretendo me arriscar). 

Para a minha grande surpresa, eu gostei do filme. Minhas expectativas não eram das melhores, mas, me vi realmente apreciando o filme. O começo derrapa, mas depois, a marcha engrena e o filme acelera. 

A história mantém o cerne básico do anime: Speed Racer (Emile Hirsch) é um jovem e promissor corredor cujo irmão mais velho, Rex, depois de brigar com o pai (John Goodman), morre em um acidente de carro. Depois do ocorrido, Speed, cujo talento nato para a corrida se revela desde criança, decide se tornar o melhor piloto do mundo, tanto para honrar o irmão falecido, quanto para trazer orgulho à sua família. 

Assim como na versão animada, o ponto de apoio de Speed é sua família, que também vem a ser a sua equipe. A Racer Motors é a empresa familiar independente que se vê diante das mega-coorporações que dominam - de forma por vezes inescrupulosas - o mundo das corridas. 

Segundo um amigo, esse tema (a estrutura familiar x grande capital e o valor do empreendimento do homem comum diante da ganância desmedida) é recorrente no cinema americano desde os anos 30 e 40, especialmente no trabalho do diretor americano Frank Capra. Coincidência ou não, essa temática esteve em alta justamente nos anos da Grande Depressão, e, atualmente, os Estados Unidos se vêem diante de uma forte recessão. 

Elucubrações a parte, essa oposição é reforçada de maneira inteligente, embora, para o espectador mais atento, seja relativamente óbvia, em uma seqüência que alternam as imagens da festa da mega empresa "inimiga" de Speed e sua família com imagens da Mamãe Racer (Susan Sarandon) preparando sanduíches de geléia e pasta de amendoim para a família, enquanto estes trabalham na oficina. 

Portanto, o primeiro grande acerto dos Wachowski foi perceber que a base da história de Speed está principalmente em sua família. Com isso, escolheram o elenco a dedo, sendo felizes nas suas decisões. Os atores que vivem Pops (John Goodman) e Mamãe Racer (Susan Sarandon), Gorducho (Paulie Litt) - o irmão caçula de Speed, o mecânico-quase família Sparky (Kick Gurry), e Trixie, a namorada do piloto, Trixie (Christina Ricci) não ficaram apenas idênticos visualmente aos personagens do desenhos, mas conseguiram encarná-los por completo. Emile Hirsch também se sai bem como Speed, equilibrando o idealismo e a audácia que são as características mais marcantes do herói. Mesmo Matthew Fox , como o misterioso Corredor X, se saí bem, embora, ás vezes seja difícil esquecer que ele é o "certinho" Jack Shephard da série Lost. 

O segundo grande acerto foram permitir Speed Racer ser exatamente o que ele é: uma produção pop, uma história simples, sem reflexões filosóficas herméticas e dramas pseudo-existencialistas que não caberiam naquele contexto. 

Speed Racer é pop até o último parafuso do Mach 5. Eles deixam claro nas cores, nos objetos cênicos, no figurinos e penteados - que misturam um clima nostálgico dos anos 60 (quando foi produzido originalmente o anime) com um ar de "futuro" (embora seja um que lembra muito os filmes de ficção dos anos 60). 

As cores sem muita gradações, estouradas em alguns momentos, os vilões caricatos (como também eram no desenho), entre outras coisas, dão um ar cartoonesco ao filme, o que invariavelmente acaba nos remetendo a outra adaptação, inspirada nos quadrinhos, Dick Tracy (1990). 

Contudo, essas mesmas cores acabam prejudicando o filme, especialmente o seu início. O filme é "colorido demais", o que às vezes o torna cansativo e faz com que o espectador perca, no meio daquele emaranhado de estímulos, os detalhes que realmente importam. 

Como disse, prejudica especialmente seu início por se este ser enfocado principalmente na família de Speed e no passado deste, onde a atuação dos atores pede mais destaque que o cenário à sua volta. 

Essas seqüências pediam uma direção de arte mais enxuta, não apenas pela questão supramencionada das atuações, mas também por perderem uma grande oportunidade de utilizar esse recurso sinestésico como mote amplificador das emoções que demandam as cenas de corrida. 

Falando nas cenas de corrida, elas empolgam. Embora eu não conseguisse parar de pensar que as pistas lembravam versões colossais das pistas de hot wheels (aliás, se eu não me engano, já tem realmente versões hot wheels das pistas do filme sendo vendidas). 

Paradoxalmente, a corrida mais empolgante - ou pelo menos a que faz o filme realmente engrenar - é aquela que mais se aproxima das corridas originais do anime: a do rally através do deserto e das montanhas. 

O filme se estende em demasia em algumas seqüências, acerta em outras - a seqüência de abertura mostrando Speed se preparando para uma corrida, batendo o pé de ansiedade, cortando para o Speed menino, também batendo pé me contigüidade visual, criando uma ligação forte entre aqueles dois momentos da vida do personagem é um exemplo desses acertos. 

Outro ponto a se destacar é a forma como a trilha sonora original do anime foi inserida de forma discreta, porém marcante durante todo o filme. 

Não acredito que essa adaptação vá se tornar um clássico do cinema como o anime no qual se baseou se tornou na história da televisão, contudo, o filme cumpre a que veio de forma competente. Enfim, entre feridos, carros capotados e explosões, acho que Speed Racer (o filme) conseguiu cruzar bem a linha de chegada. 

Speed Racer 
EUA , 2008 - 129 min 
Aventura / Ação / Infantil 


  • Direção: Andy Wachowski e Larry Wachowski 
  • Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski
    Elenco: Emile Hirsch, Matthew Fox, Christina Ricci, Paulie Litt, John Goodman, Susan Sarandon, Kick Gurry, Roger Allam.
    Nota: 3 em 5
    Galeria de Imagens 

            

       
  • quinta-feira, 2 de novembro de 2017

    Um pouquinho do Japão...


    O Catador de Batatas e o Filho da Costureira ou O Filho da Costureira e o Catador de Batatas.

    Lançado pela JBC para comemorar os 100 anos da Imigração Japonesa e realizado pelo desenhista Bruno D’Angelo e pelo roteirista Ricardo Giassetti, “O Catador de Batatas e o Filho da Costureira ou O Filho da Costureira e o Catador de Batatas”.
    conta a história de Ikemoto, um imigrante japonês, e Isidoro, um descendente de escravos:

    O Catador de Batatas
    IKEMOTO está em fuga de seu próprio passado. Sua família e toda a classe samurai se viu esquecida após a Reforma Meiji. Sem posses e sem futuro, Ikemoto vê o Brasil como um refúgio distante para curar as mágoas de seu passado. Veterano da guerra russo-japonesa (1904-05), foi prisioneiro de guerra no navio Kazan, agora de posse da frota japonesa sob o nome Kasato Maru.

    O Filho da Costureira
    ISIDORO não conheceu nem sua mãe nem seu pai. Foi criado por Dona Nâna, costureira de grande coração que acolhe crianças rejeitadas. Vivendo como colonos em uma fazenda de café, Isidoro destaca-se como um garoto esforçado e inteligente, o que o faz ser uma figura deslocada nesse ambiente rústico. Sem muitas perspectivas devido ao preconceito racial, Isidoro e Ikemoto acabam unindo forças e compartilhando problemas que os encaminham para um destino comum: a fuga para uma nova vida, com novos desafios e conquistas. 
    (extraído do site da JBC)


    A idéia da revista é sensacional. O título duplo é justificável porque na realidade são duas revistas em uma. Lendo-se da esquerda para a direita (o modo ocidental de se ler) vemos os fatos da perspectiva de Isidoro com os textos em português e legendas em japonês no rodapé; da direita para esquerda, a história de Ikemoto é contada no modo oriental de se ler, em japonês com notas em português.

    As duas histórias convergem para um único final que se encontra no meio da revista, o que parece intencionalmente ser uma metáfora para os encontros das histórias e culturas que tornaram o Brasil o que ele é.


    Contudo, apesar da premissa criativa e interessante, o resultado final é um pouco desanimador. 

    Para começar, o resumo do site da JBC que eu coloquei aqui explica muito mais a história que o texto original. Quando nós lemos as trajetórias de Isidoro e Ikemoto, muitos fatos ficam obscuros ou são pouco explicados e explicitados. Muitas vezes me peguei perguntado sobre o que exatamente aconteceu, como se imensas lacunas tivessem sido deixadas no decorrer da narrativa.

    Na realidade, essas lacunas realmente existem, vários fatos são mencionados porém não mostrados, como o modo pelo qual Ikemoto ajudou uma família de imigrantes com o racionamento de alguns alimentos (eu acho...). Aliás, não se sabe porque o menino da família auxiliada por Ikemoto deduz que o ex-militar era um catador de batatas, apesar de nunca ter sido um.

    A suposta amizade entre Isidoro e Ikemoto é mal desenvolvida, e não se entende porque no fim das contas eles decidem se juntar e partir juntos do povoado que habitam. Parece algo completamente “deus ex machina” a amizade e aliança formada entre os dois.

    Os desenhos deixam um pouco a desejar, muitas das cenas parecem  esboços de croqui, se tornando tão confusos quanto a história.

    Uma pena, pois os personagens são potencialmente interessantes e a ideia para uma homenagem a dois povos que tanto contribuíram para a formação do Brasil era genial. 

    Vale ler apenas como uma curiosidade... lamentando-se que o resultado final fique tão aquém do desejado.


    Minhas Imagens do Japão


    Em compensação, a editora CosacNaify publicou um tempo atrás  Minhas imagens do Japão, com texto e ilustrações de Etsuko Watanabe, traduzido por Cássia Silveira.

    A autora traz aos leitores o dia a dia da pequena Yumi e de seu irmão caçula Takeshi em seu dia a dia no Japão.


    Ela descreve todo o dia a dia daquelas crianças, a casa, o quarto de dormir, os apetrechos para se ir na escola, as refeições, a comida, a higiene pessoal, até mesmo o banho público. Assim como os festivais anuais e as tradições...

    Tudo de um modo tão suave, inocente e natural que é nos é impossível não adentrarmos naquela cultura com olhos de aceitação, curiosidade e interesse.



    Sei que usualmente não gosto de fazer isso, preferindo escrever minhas próprias observações, mas, encontrei uma resenha tão perfeita sobre esse livro que achei válido reproduzi-la aqui:

    “Mais que uma crônica da vida urbana no Japão contemporâneo, esse livrinho guarda a chave para compreendermos um fato muitas vezes esquecido: que, apesar das diferenças, somos todos, essencialmente, seres humanos. Não é pouco. 

    Quando os meios de comunicação e a Internet nos bombardeiam com toneladas de informações superficiais ou inúteis - em que podemos vislumbrar, quase sempre, generalizações injustas e perigosas -, as diferenças culturais passam mais a afastar do que aproximar as pessoas, transformando o outro, o estranho, no rival, no inimigo. 

    Como vive uma menina de sete anos no Japão? Nesse lugar tão longínquo - não apenas em termos geográficos -, o que há de diferente e de semelhante em relação a nós? 

    Para responder a essa pergunta, Etsuko Watanabe nos apresenta o Japão e seu povo: os utensílios do cotidiano, os objetos escolares, a vida em família. E como a mesa é posta, quais as vestimentas do dia-a-dia, algumas brincadeiras - as minúcias, enfim, que constroem uma civilização. Conhecemos também as palavras, com seus sons inesperados, às vezes surpreendentes, donas de uma eufonia para a qual precisamos reeducar nossos ouvidos. 

    A beleza do estranho nos assalta em inúmeros trechos da obra. A autora, formada pela Musashino Art University e com mais de sete livros infantis publicados, não despreza sequer os aspectos da intimidade. A importância da hora do banho, os vasos sanitários - curiosos e eficazes - e os banhos públicos - uma característica dessa cultura que não submeteu a nudez humana ao arbítrio da absoluta privacidade: todo o engenho do conforto e da higiene de uma civilização está resumido nesse livrinho. 

    De repente, percebemos que não estamos distantes do Japão dos samurais, e é como se pudéssemos vislumbrar, sob cada gesto - principalmente sob os hábitos e a disciplina escolares -, o código de honra desses antigos guerreiros. 

    Nada é esquecido: das brincadeiras infantis às superstições, à busca da sorte e da ajuda dos deuses; as lendas e os costumes; as crenças pueris do povo e as festas que as materializam, comemorações que são marcos da passagem do tempo, cujas alegrias podem conceder uma nova força à vida banal, fragmentada entre o trabalho e as poucas horas de descanso. 

    Introdução a um mundo diverso do nosso, a obra de Watanabe oferece possibilidades quase infinitas de se trabalhar com as crianças, não só para diverti-las, mas também para mostrar como as diferenças, se quisermos, podem mais unir do que separar as pessoas. Sob o olhar imparcial de uma menina capaz de se encantar com as menores coisas, Minhas imagens do Japão descreve um povo cujas tradições e história engrandecem a espécie humana”. 

    (por Rodrigo Gurgel – “A beleza do diferente” em http://educacao.uol.com.br/resenhas/imagens-japao.jhtm)

    Enfim, apesar de ser um livro infantil, é uma leitura indicada para qualquer que seja a sua idade. 

    quinta-feira, 26 de outubro de 2017

    Mad Monster Party? (Parte 02)

    O mistério explícito diz respeito à presença de It (a Coisa) na festa. Nos créditos iniciais, ele é mostrado como um dos protagonistas do filme, mas, não sabemos exatamente quem ou o que seria It. Apenas sabemos o quão perigoso e selvagem It é, fato reiterado nas falas do Barão e de Francesca no decorrer da história, o que acaba criando uma expectativa de que, apesar de não ter sido convidadp para a festa, It vai aparecer.

    O que, de fato, acontece. Francesca planeja, juntamente com Drácula, matar Felix e se apossar dos segredos de Frankenstein. Entretanto, o conde a trai e se junta ao Monstro e sua companheira. Encurralada e ressentida, Francesca manda um convite para It, que surge na Ilha, nos minutos finais do filme.



    It é nada mais, nada menos, King Kong, o gorila gigante que apareceu pela primeira vez no filme de 1933, dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Com a chegada dele à Ilha - que, neste momento, pode também ser inferida como referência à própria Ilha da Caveira, lar original de Kong - não apenas o caos já existente devido a perseguição dos monstros a Felix e Francesca aumenta, como elementos apresentados anteriormente na narrativa ganham sua real função. Kong vê a foto de Francesca e se apaixona pela ruiva, seqüestrando-a; os aeroplanos do Barão são utilizados na reprodução da famosa seqüência em que o gorila é abatido no alto do Empire State, sendo o prédio substituído por uma montanha da ilha.
    Contudo, como dissemos, existe também um segundo mistério no filme, implícito nas entrelinhas e que se faz totalmente claro ao final do filme. A verdadeira natureza de Francesca. Pistas são lançadas no decorrer da história.
    Quando a moça surge pela primeira vez, o Dr. Frankenstein solta a seguinte fala:
    Vê-la todo dia me dá grande prazer, se eu puder dizer, é uma obra de arte [referindo-se à Francesca, mote que ela própria retoma em diálogo com Felix ao fim do filme, sobre ela ser uma "obra de arte"]

    Pouco antes do jantar, quando o Monstro e sua companheira descem pela grande escadaria do castelo em direção ao hall de entrada, o Doutor cochicha com Francesca, que estão ao pé da escada, ao notar a expressão de desagrado da ruiva com a chegada dos dois monstros criados pelo Barão:

    Lembre-se que somos todos uma família feliz aqui.

    Tal fala é tomada, inicialmente, como algo metafórico e não literal, entretanto, a revelação final muda completamente seu sentido.

    Depois de escapar do King Kong, sendo trocada pelo Barão, Francesca foge da ilha, de barco, com Felix. Logo após assistirem à destruição do lugar, ele se vira para ela, dizendo:

    (...)Vamos nos casar. E logo haverá o som dos pequeninos Flankens correndo.
    Francesca: Oh, Felix [chora]
    Felix: O que foi? O que eu disse? Compraremos uma casa maior. Vou parar de espirar. O que foi?
    Francesca: Nunca poderei me casar com você.
    Felix: Não pode? Não me ama?
    Francesca: Sim, eu amo. Por isso não posso me casar.
    Felix: Tenho que lhe dizer algo. Não posso namorar você em selvas.
    Francesca: Há uma coisa que eu preciso dizer. Nunca pensou por que eu estava naquela ilha? Não sou um ser humano como você. Fui criada por Frankenstein, depois do Monstro e sua companheira. Fui sua obra-prima. Onde outras mulheres têm um coração, eu tenho uma mola que vai desenrolar. Onde outras mulheres têm pulmões, eu tenho uma bomba que usa baterias e que gasta. Onde outras mulheres têm cotovelos e joelhos, eu tenho juntas metálicas que vão enferrujar e endurecer. Sou uma máquina com centenas de peças que vão acabar de desgastando.
    Felix: Bem, Francesca, nenhum de nós é perfeito... [Click] Perfeito... [Click] Perfeito... [Click] Perfeito...

    Deste modo, as pistas sutilmente lançadas no decorrer do filme acabam se encaixando ao descobrirmos que Francesca é uma criação do Barão. Por isso ela se considerava uma herdeira de direito, por isso ela foi apontada como a obra de arte, por isso o Barão a lembra que estão em família. Aqui, também temos outra dupla aproximação entre Felix e Francesca.

    O verdadeiro nome de Francesca se revela como um nome duplamente fonético como o de Felix: Francesca Frankenstein, quase como uma Lois Lane - namorada e atualmente esposa do Superman, vulgo Clark Kent. Francesca pode ser reduzido para Frankie, que pode ser também diminutivo de Frankenstein, mostrando não ser por acaso esse o nome dela.

    A segunda aproximação se dá através do estranho click que intercala a fala de Felix, como se ele fosse um robô que emperrou no meio de um procedimento, insinuando-se, que, assim como ela, ele não deve ser humano, mas sim, um construto.


    A seqüência em questão é praticamente um diálogo do filme Some Like It Hot (EUA,1959), conhecido no Brasil como Quanto mais quente melhor. No filme original, roteirizado (em parceria com I.A.L. Diamond ), dirigido e produzido por Billy Wilder, Jerry/Daphne (Jack Lemon) tenta contar ao milionário Osgood Fielding III (Joe E. Brown), com quem se envolveu, que na verdade é um homem, enquanto estão ambos também fugindo em um barco, mas de mafiosos. Osgood apenas retruca:Ninguém é perfeito!

    Entretanto, apesar de ser a mais explícita, essa não é a única relação que se pode fazer entre a obra de Wilder e o filme Mad Monster Party?. Wilder era bastante conhecido por seus diálogos inteligentes, carregados de duplos sentidos, e que poderiam ser interpretados em diferentes níveis.
    Muitas dos diálogos de Mad Monster Party? são construídos de modo a darem aos espectadores a oportunidade de encontrarem nele um significado a mais, sem necessariamente fazer com quem não compreendeu esse sentido extra perca o desenrolar da trama.

    As melhores falas, sem dúvida, são ditas pelo espirituoso e, por vezes, sarcástico Conde Drácula. Abaixo, segue uma dos diálogos travados pelo vampiro. Na seqüência em questão, ele tenta seduzir Francesca, logo após o jantar.

    Drácula: Uma beijoca na orelha? Uma mordida no pescoço?
    Francesca: Conde, eu estou com medo. Andou bebendo.
    Drácula: Não o suficiente. Não a minha bebida favorita. Vamos, deixe-me beijá-la. Mulheres já morreram por um beijo meu.

    Em um primeiro nível a conversa pode ser compreendida apenas como a tentativa de um bêbado em beijar a moça, contudo, considerando quem é o bêbado em questão, o Conde Drácula, um notório vampiro, as falas "uma mordida no pescoço", "Mulheres já morreram por um beijo meu" ou a afirmação de que ele não bebeu o suficiente a bebida favorita dele (sangue) ganham um segundo sentido.

    Assim através dessa análise e de várias outras referências que poderiam ser mostradas aqui, comprovamos que Mad Monster Party? se configura como um entretenimento inteligente.

    Referências:

    ANDRADE A. L. Entretenimento inteligente: o cinema de Billy Wilder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 291 p.

    FESTA do Monstro Maluco
    (MAD Monster Party?, EUA, 1967)
    Direção: Jules Bass
    Produção: Joseph E. Levine, Arthur Rankin Jr. e Larry Roemer.
    Roteiro: Len Korobkin, Harvey Kurtzman e Arthur Rankin Jr.
    Interpretes (vozes): Boris Karloff; Allen Swift; Gale Garnett; Phyllis Diller; Ethel Ennis e outros.
    Works Filmes, DVD (94 min)

    Mad Monsters and Parties. Retrojunk. Sobre Mad Monster Party e sua continuação Mad, Mad Monsters. Disponível em http://www.retrojunk.com/details_articles/694/


    A Festa do Monstro Maluco. Boca do Inferno, sem data. Disponível em http://www.bocadoinferno.com/romepeige/artigos/madmonster.html

    A Festa do Monstro Maluco. Casa do Horror, 10 jan 2006. Disponível em http://www.casadohorror.t5.com.br/catalogo/a_festa_do_monstro_maluco_frame.htm

    Mad Monster Party? Internal Movie Database, sem data. Disponível em http://www.imdb.com/title/tt0061931/

    Mad Monster Party? Wikipedia, sem data. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Mad_Monster_Party

    Nostalgia: A Festa do Monstro Maluco em DVD. Universo HQ, 02 mai 2006. Disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/2006/n02052006_03.cfm


    [1] Existe uma versão cinematográfica dessa história chamada de Island of Lost Souls ( EUA, 1933) com Charles Laughton e Bela Lugosi.
    [2] Existe uma versão cinematográfica de 1925, estrelada por Lon Chaney Sr.

    terça-feira, 24 de outubro de 2017

    Mad Monster Party? (Parte 1)

     

    Uma das diversas possibilidades do cinema, e, possivelmente a mais utilizada e difundida de todas, é a arte de se contar uma história.


    Entretanto, existe um modo próprio e peculiar de se narrar uma história através do meio cinematográfico, calcado na relação entre imagem e texto para se criar um sentido. O verdadeiro significado do que se mostra, na maioria das vezes, não repousa apenas no texto ou apenas na imagem, mas na junção de ambos, criando um terceiro sentido, seja pelo reforço do texto sobre a imagem - e vice-versa- , seja por sua contraposição. O cinema, é claro, pode prescindir do texto, sendo apresentando através de imagens somente. Contudo, ainda assim, existe um texto primário, configurado pelo roteiro, que depois será convertido em imagens.
    No entanto, existem milhares de possibilidades de se contar uma história. Interessa-nos aqui o que a professora Ana Lúcia Andrade (2004) configura como entretenimento inteligente ou entretenimento de qualidade, compreendido como:

    Filmes narrados de forma a atingir tanto o espectador ingênuo, preocupado com o desenvolvimento da trama, num primeiro nível de leitura, quanto o espectador crítico, atento, principalmente, à forma como o discurso se constituí, e à possibilidade de uma segunda leitura nas entrelinhas da narrativa (p 22-23, grifo da autora)

    È com esse conceito em mente que nos propomos a analisar o filme A Festa do Monstro Maluco (Mad Monster Party?, EUA, 1969).

    A trama, aparentemente simples, trata do dilema do Doutor - e Barão - Boris von Frankenstein (voz de Boris Karloff). Chefe da Organização Mundial dos Monstros, ele descobre uma fórmula capaz de destruir a matéria, assim, acreditando estar no ponto alto de sua carreira, Frankenstein decide se aposentar, e, convoca todos os monstros para uma reunião, na qual, nomeará seu sucessor.

    Realizado através da técnica de animação em stop motion, em uma primeira leitura, Mad Monster Party? aparenta ser apenas um filme infantil, estrelado por monstros clássicos. Entretanto, observando-se com mais atenção, percebemos que estamos diante de, não apenas uma comédia espirituosa com diálogos que permitem mais de uma interpretação, mas também de uma homenagem a vários gêneros do cinema americano, tanto do período mudo, quanto do período clássico ou dos filmes B dos anos 50 ou a comédia camp dos anos 60.

    Dirigido por Jules Bass, que também realizou Rudolph, a Rena do Nariz Vermelho (EUA, 1964), a animação teve também sua equipe Harvey Kurtzman, no roteiro, e Jack Davis como character designer.

    Os nomes desses dois profissionais no projeto merecem certo destaque pela contribuição de ambos em outra mídia cuja narrativa está também calcada na interação texto-imagem : as histórias em quadrinhos.

    Kurtzman era escritor da revista Mad, famosa por seu humor ácido, e Davis fazia ilustrações para a Mad e para a revista de terror Tales from the Crypt, ambas publicadas pela EC Comics.

    Quem sabe a presença dos dois seja totalmente proposital. Assim como a indústria de cinema, o mercado de quadrinhos passou pelo crivo da censura. O Comics Code Authority, criado em 1954, era o Código Hayes dos quadrinhos. A EC Comics foi famosa por não se submeter a esse código. Talvez, por isso, nada mais apropriado para homenagear o cinema clássico, onde driblar a censura se tornou uma arte sutil e inteligente, que dois artistas que também lidaram com a censura, ainda que nos quadrinhos. Soma-se a isso, o fato de que tanto a Mad e, principalmente, Tales from Crypt possuírem estreitas relações com os filmes de terror B dos anos 50, também homenageados em Mad Monster Party?.

    O duplo sentido já começa no nome do filme em inglês, Mad Monster Party?, cuja expressão pode remeter tanto ao fato de se tratar de uma festa onde estarão monstros, mas também pode ser traduzido como "uma festa de arromba", dando a proporção da celebração que será mostrada no filme.

    Antes de se começar a tratar especificamente do filme, deve-se ressaltar a presença de Boris Karloff como dublador do Dr. Frankestein, cujo primeiro nome no filme é Boris, em uma correlação direta com o ator. Karloff se tornou famoso por sua atuação como o Monstro de Frankenstein no filme de 1931, dos estúdios Universal, dirigido por James Whale. Dessa forma, Boris Karloff surge - e é homenageado - triplamente no filme: através de sua voz, através da caracterização do cientista, que nada mais é que uma versão puppet do ator, e através da caracterização do boneco do Monstro, praticamente uma cópia da versão de 1931.



    O filme inicia-se como muitos dos filmes do período clássico hollywoodiano, especialmente os realizados por Alfred Hitchcock. A seqüência inicial mostra, em plano geral, uma ilha - talvez uma referência à Ilha do Doutor Moreau (1), na qual um cientista recluso criava monstros. Gradativamente somos apresentados ao ambiente: a selva, o cemitério que lá existe, o castelo, uma das janelas do castelo - mais especificamente a janela do laboratório, até que, finalmente, o Dr Frankestein é mostrado realizando uma experiência. Ou seja, vamos do geral para o particular, de modo a mostrar ao espectador não apenas a ambientação da história, mas também o tom do filme.

    Ainda nesse começo, tem-se uma citação de outra obra importante na literatura de terror.

    Dr. Frankenstein: Há-há-há. Como disse o Corvo: nunca mais...nunca mais...

    A fala do cientista refere-se ao corvo em que usara a fórmula de destruição da matéria e que acabara de explodir, mas também está relacionada ao poema O Corvo, escritor por Edgar Allan Poe, que por sua vez foi adaptado para o cinema em 1935, em um filme estrelado por Boris Karloff e Bela Lugosi - cujo papel mais famoso é o Conde Drácula, no clássico da Universal, de 1931.

    Após constatar seu sucesso, o Doutor envia, através de morcegos-corujas, convites para os mais renomados monstros da literatura e do cinema. Acompanhamos o vôos dos morcegos e as respectivas entregas de convites: Conde Drácula, o Lobisomem, Dr. Jekyll e Sr. Hyde, a Múmia, o Homem Invisível, o Corcunda de Notre Dame, o Monstro da Lagoa Negra. Entre os convivas também estarão a Criatura de Frankenstein e sua Noiva.

    Cada um desses monstros apareceu em clássicos filmes de terror, quase em sua maioria, produzidos pelo estúdio da Universal: Dracula (EUA ,1931), The Wolf Man (EUA, 1941), The Hunchback of Notre Dame (EUA, 1923), The Invisible Man (EUA,1933),Dr. Jekyll and Mr Hyde (EUA,1931), The Mummy (EUA, 1932). Grande parte deles estrelados pelos atores-ícones do gênero no período: Bela Lugosi, Boris Karloff, Lon Chaney Sr. e Lon Chaney Jr.
    Mesmo o misterioso It - que o Doutor se recusa a convidar por ser selvagem demais - pertence a um filme desse período, como mencionaremos mais adiante.

    Creature from the Black Lagoon (EUA,1954), também foi produzido pela Universal, mas é tido como representante dos filmes de Horror B que fizeram fama nos anos 50.

    A composição visual das personagens refere-se diretamente a cada um desses filmes, pois, são, praticamente uma reprodução da caracterização deles nessas obras. Drácula, por exemplo, notadamente possui todos os trejeitos de Lugosi: a sobrancelha arqueada, o ato de colocar a capa diante de si, tampando parcialmente o rosto.


    No caso do Lobisomem, vale acrescentar que, ao invés de representar Larry Talbot (Lon Chaney Jr), seu visual cigano é referência ao papel de Bela Lugosi, o lobisomem cigano que mordeu Talbot, o que acaba tornando até mais divertido o fato de que, em Mad Monster Party?, serem Drácula e Lobisomem grandes amigos.

    Outras referências marcantes aos filmes de terror, estão na presença dos garçons-zumbis e do mordomo-zumbi Yetch, uma menção a White Zombie (EUA,1932), dirigido por Victor Halperin e estrelado por Bela Lugosi; na seqüência em que o Doutor Frankestein toca um órgão - remetendo indiretamente ao Fantasma da Ópera (2) - e a menção a Mefistófeles, na música de abertura. Mefistófeles é o demônio presente na história de Fausto, cuja adaptação feita em 1926, por Murnau, foi um dos marcos do Expressionismo Alemão, cuja influência no cinema de horror americano dos anos 30 é inegável.

    As onomatopéias são referência tanto à linguagem dos quadrinhos quanto às comédias camp dos anos 60, estilo estético calcado no mal-gosto e na ironia, cujo maior representante, é a série de TV Batman (EUA ,1966-68), que também teve uma versão cinematográfica. Alguns enquadramentos, inclusive, especialmente na apresentação da banda de esqueletos, são típicos do estilo camp, forçosamente inclinados, causando uma certa estranheza no espectador.

    Outros gêneros são explicitamente homenageados, como as seqüências de música e dança, notadamente inspiradas nos antigos musicais. A comédia pastelão do cinema mudo pode ser vista retratada na guerra de comidas e tortas durante o jantar dos monstros. E, o cozinheiro do castelo, genialmente chamado de Máfia Machiavelli - referência tanto à máfia propriamente dita quanto ao escritor Maquiavel, cujo mote mais famoso é "os fins justificam os meios" e cujo nome deu origem ao termo "maquiavélico"-, é caracterizado como um italiano mal-encarado, careca, semi-barbado, com uma cicatriz no rosto - talvez uma referência a Scarface (EUA ,1932), de Howard Haws. Máfia Machiavelli é a perfeita caracterização do personagem típico de filmes de gangster dos anos 30. Inclusive, a especialidade do chef é fazer pratos literalmente mortais. A seqüência em que o Conde Drácula tenta, em vão, matar o herdeiro do Barão Frankenstein parece ser inspirada nos cartoons como Papa-Leguas, Tom e Jerry, Pernalonga ou Droopy.

    Depois da apresentação de cada um dos monstros que estarão presente na reunião são introduzidos aos espectadores, inclusive com direito a algumas discretas piadas visuais como o convite do Homem-Invisível ser escrito com tinta invisível, o herói da história é apresentado.

    Através de uma fusão entre as bolhas do Lagoa Negra e as bolhas do remédio que o protagonista prepara para si somos apresentados a ele, Felix Flanken. Tal passagem não é aleatória. Ela não mostra apenas uma mudança de local, mas já cria um ligação entre o rapaz e os monstros, que, dado os aspectos de Felix, aparentemente não possuíriam nenhuma relação entre si.


    O destaque para o remédio é importante por outra razão, pois, por se assemelhar à poção da destruição criada por Frankenstein, ela será confundida com a mesma e salvará a vida de Felix mais adiante no filme. Esse e vários outros elementos são colocados de forma discreta na trama, mas não acidental, pois, no decorrer do filme se revelam cruciais para a narrativa - como, por exemplo, os aeroplanos do Barão, ou o porta-retrato da personagem feminina principal, cuja importância falaremos mais adiante.

    Felix Flanken, cujo nome foneticamente duplo pode ser considerado referência a uma tradição dos quadrinhos vista em diversos personagens como Clark Kent (Superman), Peter Parker (Spiderman) ou Bruce Banner (Hulk), é apresentado como rapaz de aparência frágil, desastrado, ingênuo e de bom coração. Um farmacêutico que trabalha - de graça - em uma loja de conveniência, e que passa mais tempo na farmácia, fazendo experiências e se ocupando em lidar com suas alergias, que cuidando do lugar e atendendo os clientes.



    Se por um lado, a aparência dele remete a um herói frágil, o entusiasmo com que ele recebe o convite para a festa de Frankenstein, acreditando ser um convite para a apresentação de uma experiência cientifica, mostra que existe mais que mera timidez em Flanken, fazendo com que o tomemos como nosso herói de fato.

    Flanken é o sobrinho de Frankenstein, filho da irmã dele, a "ovelha branca da família", herdeiro por direito do Barão, embora nem todos concordem. Em especial, Francesca, a secretária do Frankenstein. Em oposição a Flanken, ela é ruiva, curvilínea e sexy, fazendo o tipo femme fatale, que remete aos filmes noir dos anos 40. Entretanto, o casal formado pelo rapaz tímido e comum e a mocinha voluptuosa também é típico dos filmes B de monstros dos anos 50.

    A fala do Doutor Frankenstein já dá a entender que, apesar de todas as diferenças, existirá uma aproximação entre os dois.

    Dr. Frankenstein: Quero que os dois sejam amigos.[(ele diz e saí]
    Francesca replica: Gostar dele? Eu vou amá-lo a ponto de despedaçá-lo.

    Apesar das intenções explícitas de Francesca em eliminar Felix, já que ela, por razões plausíveis e posteriormente reveladas, se considera a verdadeira herdeira, a fala do doutor já induz os espectadores a verem os dois como um provável casal. Além disso, o fato de ambos serem, aparentemente, os únicos humanos jovens do lugar também leva a essa dedução.

    A seqüência em que eles se beijam é completamente cinematográfica. Imagens de elementos da natureza como ondas quebrando contra rochas, raios, uma árvore caindo, são usadas para externalizar o turbilhão emocional que o beijo ocasionou em ambos.
    Da cena do beijo propriamente dita, a câmera se movimenta, e, com uma pequena e discreta fusão, enquadra a lua cheia - reconhecido símbolo de romance. Logo depois, temos um corte seco para o casal na selva. Francesca faz uma serenata para Felix. Como em muitos filmes dos anos 30 e 40, especialmente nas screwball comedies, é ela - a mulher - quem comanda a ação.
    A cena logo posterior à serenata, em que os dois namoram na selva parece decalcada de um filme dirigido por Ernst Lubitsch. Francesca beija Felix em cima do galho de uma árvore, os dois caem para trás, no meio dos arbustos. Não vemos absolutamente mais nada do casal, apenas a paisagem, a luz gradativamente diminui, quase em um fade in, indicando uma passagem de tempo. O que exatamente os dois fizeram escondidos sob os arbustos fica a cargo da imaginação do espectador.

    Convém abrir, no próximo artigo, um parêntesis sobre os dois mistérios que surgem na trama. Um implícito e outro explícito.


    quinta-feira, 19 de outubro de 2017

    Por que Harry Potter é um Herói Universal? - Parte 02


    Dentre os perigos enfrentados por Harry Potter no decorrer da série, dois merecem destaque: os dementadores e Voldemort.


    Os dementadores são uma criação pessoal da própria Rowling.São criaturas mágicas que não possuem rosto e vestem mantos longos, que cobrem inteiramente seu corpo “cinzento, de aparência viscosa e coberto de feridas”. Dementadores “esgotam a paz, a esperança e a felicidade do ar à sua volta”, enfim se alimentam de tudo que é bom nas pessoas, tornando-as tristes e vazias. De acordo com a própria autora, tais criaturas são uma personificação de uma doença psíquica grave: a depressão. Se o sofrimento e a tristeza podem levar a uma maturidade, a depressão seria caracterizada por uma paralisação no viver. 

    Estar deprimido poderia corresponder a estar no Tártaro, um dos três níveis dos Mundos Inferiores ou Hades (os outros dois seriam os Campos Elísios, espécie de Paraíso, e o Érebo, uma espécie de purgatório). O Tártaro propriamente dito seria o local de suplício eterno, o que nos remete a pessoas que se acham em situações de desespero que aparentemente não tem volta, tal qual pode ser caracterizada a depressão. Enfrentar os dementadores é enfrentar a si próprio, é encontrar uma saída do Tártaro, e superar essa paralisação no viver. 

    Também os dementadores-depressão podem ser comparados ao Caos. A um caos interno da pessoa. Na mitologia, Caos é a personificação de um vazio primordial, “quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo”, enfim, é aquele espaço no qual os elementos do universo ainda estariam confusos e pouco claros, e que após uma certa organização, dariam origem a um novo universo. A sensação de caos faria parte da depressão: nesse momento, a pessoa se encontra em um estado confuso, se sente perdida e descentrada, contudo, diferente do caos mitológico e da sensação de caos dissociada da depressão, aqui, os elementos negativos estão evidenciados. Para enfrentar a depressão, a pessoa necessitaria perceber que seu micro-universo interno está desestabilizado, e que, ao conseguir superar sua paralisação, seria como se recriasse a si própria (um novo “micro-universo”). 

    Mas, o grande inimigo de Harry Potter se encontra na figura de Voldemort. Assim como Harry contém em si características presentes nos mais diversos heróis das mais diversas mitologias, Aquele-que-não-deve-ser-nomeado possui características dos mais diversos vilões, enfim, Voldemort é a personificação do clássico Senhor das Trevas (como também é chamado pelos bruxos). O vilão deseja se tornar o Príncipe deste mundo, é representado como uma “força abstrata”, menos carne e sangue e mais energia sobrenatural, simboliza uma “degradação” (um colapso moral), pratica o mal por inveja e, principalmente tenta perverter as leis naturais, submete-las a seus desígnios (retratado em sua busca por imortalidade). 

    O sonho maior de Voldemort não é dominar o mundo todo, tanto o dos trouxas quanto o dos bruxos, mas sim vencer a Morte. Ele sempre busca realizar tal intento das mais diversas formas possíveis, seja na tentativa de possuir a Pedra Filosofal, capaz de produzir o Elixir da Longa Vida, seja através da profanação do túmulo de seu pai, em O Cálice de Fogo, ou ainda através da maculação de uma criatura pura como um unicórnio, ao mata-lo e alimentar-se de seu sangue, como visto em A Pedra Filosofal.

    Essa busca de imortalidade empreendida por Voldemort remete-nos a um antigo mito grego: a história de Sísifo. Sísifo era um rei de Corinto, que por duas vezes tentou enganar a morte. Em uma das vezes, ele aprisionou a própria Morte (em algumas versões consta que ele aprisionou Hades), em seu castelo. 

    Enquanto a Morte (ou Hades) estivesse aprisionada, ninguém morreria. Por fim, ela foi libertada e Sísifo foi condenado à morte. Entretanto, o esperto rei pediu à sua esposa que o enterrasse sem os ritos funerários usuais. Chegando no Mundo Inferior, reclamou a Hades do procedimento da esposa, e este permitiu que o rei retornasse para punir a esposa. Contudo, o rei permaneceu na Terra até que foi capturado por Hermes e forçado a empurrar uma pedra para o topo de uma colina, mas, toda vez que alcança o topo, a pedra cai de novo, e ele novamente é obrigado a empurra-la para cima. 

    Essa obsessão pela vida eterna é a essência da depravação do Senhor das Trevas. Tanto Sísifo quanto Voldemort desafiam a ordem natural das coisas e ambos são punidos por essa violação, um com seu castigo eterno no Tártaro, outro ao ser transformado em um bom tempo num ser menos que humano, tendo que habitar cobras e outras bestas similares para continuar vivo. 

    Apesar do comportamento de Sísifo e Voldemort parecer imoral e insano, é muito mais comum do que imaginamos, especialmente em uma sociedade como a nossa em que a beleza (dentro de certos padrões estabelecidos), a juventude e o poder são, por muitos, os aspectos mais valorizados nas pessoas. Quantos não submeteram seus corpos às mais terríveis torturas e deformações (cirurgias plásticas) para tentar alcançar esse ideal, numa tentativa de enganar o tempo e atrasar a chegada da velhice e, fantasiosamente, da Morte? 

    Mas, não apenas no aspecto estético tal comportamento pode ser observado. Voldemort é a personificação da deturpação da magia que, no nosso mundo, é nada mais nada menos que a Ciência. Enfim, ele representa uma evolução da ciência sem ética ou reflexão, em que o conhecimento é válido por si só e não por suas conseqüências. Mas, será que vale a pena construir um conhecimento sem sabedoria, que no fim mais prejudica que ajuda? Uma coisa é pesquisar a cura de doenças para tentar salvar vidas, outra é estudar bactérias para se criar armas químicas. Sem falar na polêmica envolvida nas pesquisas genéticas, em especial na possível criação de clones humanos. Muitas pessoas acreditam que tais clones poderiam ser uma forma de garantir sua imortalidade, esquecendo, contudo que uma pessoa é mais que suas características biológicas, sendo que os meios ambientes, culturais e históricos, além de outros fatores, interferem na constituição do sujeito. Uma cópia genética não é de modo algum uma cópia psicológica de alguém. 

    O que Rowling parece questionar não é a evolução da tecnologia e da ciência, ela não prega a estagnação desses meios, a questão está em se refletir sobre eles, ter um olhar mais crítico sobre o assunto. Não é negar ou virar as costas para a ciência (ou magia), afinal, em seus livros tanto os heróis quanto os vilões utilizam mágica, a questão está em usar tanto a magia quanto a ciência com ética e responsabilidade. 

    Enfim, por todas as razões apontadas neste trabalho, podemos afirmar que a saga de Harry Potter possui em si temas simultaneamente antigos e atuais, pois os mitos se constituem em algo eterno uma vez que dizem respeito à vivência humana, apenas mudam de roupagem, mas continuam presentes em nossas vidas, mesmo que não tenhamos consciência disso. 

    Referências Bibliográficas

    BRANDÃO, Junito Souza Mitologia Grega volume 1. 

    __________ Mitologia Grega volume 3. 

    CAMPBELL, Joseph O Herói de mil faces Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 

    COLBERT, David . O Mundos Mágico de Harry Potter Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

    FREUD, Sigmund “Romances Familiares” In: Edição Eletrônica das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud IMAGO ELETRÔNICA. 

    ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 

    __________ Harry Potter e a Câmara Secreta Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 

    __________Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 

    __________Harry Potter e o Cálice de Fogo Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 

    __________Harry Potter e a Ordem da Fênix Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 

    __________Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 

    __________Harry Potter e as Relíquias Mortais. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 

    HarryPotter.com - http://harrypotter.warnerbros.com/

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    Nota da Autora:

    Este trabalho é apenas uma pequena parte das muitas referências existentes no texto da JK. Foi feito como trabalho final de um curso que fiz. Queria ter citado mais coisas, mas por falta de tempo e por limitação de tamanho precisei tirar algumas coisas.Recomendo que leiam os livros que usei como base, especialmente O Herói de Mil faces de Campbell.Outro livro que recomendo é "Fadas no Divã", de Diana e Mário Corso, que trazem relatos e análises de vários contos de fadas clássicos e modernos, incluindo Harry Potter. Nesse link, é possível perceber o ritmo das análises feita pela dupla Corso em torno das diferentes histórias de contos de fadas.

    A imagem usada para ilustrar a página é da desenhista Mary Grandpre, ilustradora oficial de Harry Potter nos Estados Unidos. 

    terça-feira, 17 de outubro de 2017

    Por que Harry Potter é um Herói Universal? - Parte 01


    Nos últimos anos um novo fenômeno surgiu na mídia mundial, se tornando lentamente um sucesso literário para posteriormente se tornar uma febre nos mais diversos meios, desde videogames até sucedidas adaptações cinematográficas. Trata-se da saga do bruxo Harry Potter.

    Criado por Joanne K. Rowling, Harry Potter dá uma roupagem moderna às antigas histórias de magia e feitiçaria. Em todo o decorrer da saga de Potter são citados os mais diversos mitos. Pelas páginas dos livros somos confrontados por esfinges, grifos, quimeras, modernas versões de Cérbero, o cão de três cabeças guardião do Hades, fênix, espelhos mágicos, centauros, sereias, basiliscos, só para citar alguns exemplos. Analisar cada uma dessas citações renderia páginas e páginas que possivelmente originariam um livro. 

    Portanto, este artigo visa abordar principalmente o tema maior de toda a saga do pequeno bruxo: sua ressonância com o mito do herói. 

    Para que isso seja possível, é necessário que um breve resumo da história de Harry Potter seja aqui relatado. 

    Harry Potter é um jovem mago que teve os pais assassinados pelo maligno bruxo Voldemort (ou Aquele-que-não-deve-ser-nomeado), sendo que apenas Harry escapou do ataque, com uma cicatriz em forma de raio na testa. Criado pelos tios trouxas (pessoas que não possuem magia), Harry só foi descobrir que era bruxo aos 11 anos quando recebeu uma carta para se matricular na escola de bruxaria Hogwarts. Lá ele se torna amigo de Ron Weasley (aprendiz de bruxos, filho de bruxos) e Hermione Granger (aprendiz de bruxa, filha de trouxas). Também entra em contado com o guardião das chaves da escola, Hagrid, um meio gigante, com o diretor da escola, Albus Dumbledore, considerado um dos maiores magos da época, e com a professora Minerva, que se tornam uma espécie de protetores, tutores e conselheiros de Harry. A cada ano que passa, Voldemort tenta recuperar seu poder e sua forma física (já que esta foi destruída quando tentou matar Harry, quando este ainda era um bebê), tentando simultaneamente assassinar Potter. A cada novo embate, Harry torna-se mais forte mais consciente de suas capacidades e menos dependente de seus protetores. No decorrer da série, ele também descobre um pouco sobre o passado de seu pai (a quem ele lembra fisicamente) e conhece Sirius Black, melhor amigo de seu pai e seu padrinho. 

    Harry possui diversas similaridades com os mais diversos heróis encontrados nas mais diversas mitologias e literaturas. Assim como Édipo, Moisés, o rei Arthur ou mais recentemente Luke Skywalker de Guerra nas Estrelas, Potter é caracterizado como um príncipe perdido ou um rei oculto. Harry ignorava completamente sua origem “nobre” (o fato de que era um bruxo) até o dia em que foi convocado para estudar em Hogwarts. 

    Entretanto, Harry já sabia que era diferente, não se sentia adequado ao seu lar adotivo, como se não pertencesse àquele lugar. Em contrapartida, seus tios, os Dursley, o tratavam como lixo, colocando-o para dormir debaixo da escada, maltratando-o, humilhando-o. 

    É aí, então, que Harry descobre realmente não pertence ao mundo dos Dursley (seus “pais” trouxas), mas que na realidade é filho de “nobres”, seus pais bruxos: Lily e James Potter. 

    Tal configuração da estrutura familiar de Harry remete-nos ao texto Romances Familiares de Freud. 

    De acordo com Freud, a criança pequena vê seus pais de uma forma bastante idealizada, eles são “a autoridade única e a fonte de todos os conhecimentos”. São perfeitos. Sendo assim, seu maior desejo seria o de ser como os pais, ser grande como eles (Harry é constantemente comparado a James, e, como ele, é um exímio atleta no esporte dos bruxos, o quadribol). Contudo, com o passar dos anos, a criança começa a reconhecer os defeitos, limites e fraquezas dos pais, passando a criticá-los. 

    Somando-se a essa desvalorização dos pais, a criança passa a se sentir negligenciada por eles (como Harry é pelos Dursley), sentindo que não está recebendo todo o amor dos pais, especialmente se tem de compartilha-los com irmãos e irmãs (representados em Potter por seu mimado primo Duda, que sempre fica com as melhores roupas e brinquedos). A partir daí, a criança passa a desenvolver a fantasia de que seus pais são na realidade seu padrasto e sua madrasta. 

    Como aponta Freud: 

    “(...) a imaginação da criança entrega-se à tarefa de libertar-se dos pais que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em geral de uma posição social mais elevada. Nessa conexão ela lançará mão de quaisquer coincidências oportunas de sua experiência real, tal como quando trava conhecimento com o senhor da Casa Grande ou com o dono de alguma grande propriedade, se mora no campo, ou com algum membro da aristocracia, se mora na cidade. Esses acontecimentos fortuitos despertam a inveja da criança, que encontra expressão numa fantasia em que seus pais são substituídos por outros de melhor linhagem”.

    Os pais imperfeitos de Harry são os Dursley, enquanto seus pais bruxos, Lily e James configurariam os pais de “melhor linhagem”. 

    Mas, como Freud afirma, esses pais de “melhor linhagem” na realidade não passam de uma tentativa da criança de recuperar aqueles seus pais perfeitos da primeira infância, se mostrando, no fim, inalcançáveis e impossíveis de se recuperar, tal qual os pais de Harry, que estão mortos.

    Sendo esse tipo de fantasia comum à maioria das pessoas, ela, em Harry, constitui uma das primeiras características que o torna tão próximo de todos nós. 

    Outra característica diz respeito a todas as dúvidas, medos e incertezas que Potter carrega e demonstra no decorrer de suas histórias. Especialmente em um ponto específico: Quando Harry ingressou em Hogwarts, ele passou por um teste (o do Chapéu Seletor) que determinaria a qual casa ele pertenceria. Hogwarts é um colégio interno, sendo assim, cada aluno é designado a um dormitório diferente, de acordo com suas características pessoais, que são observados pelo Chapéu Seletor – um chapéu mágico falante. Assim, o chapéu mágico determina em qual casa (num total de quatro, três “do bem” e uma “do mal”) a que o aluno pertence. O Chapéu, ao analisar Harry, ficou em dúvida se seu lugar era na Grifinória (representado por um leão e a mais forte das “boas” casas) ou na Sonserina (cujo símbolo é uma serpente, e é a casa “má”). Apesar de ter sido colocado na Grifinória (por pedido do próprio Potter), o jovem bruxo constantemente se debate sobre essa escolha. Enfim, se vê dividido, como cada um de nós, entre o bem e o mal, pois, apesar de ele próprio ter decidido seguir o caminho do bem, muitas vezes ele precisa lutar contra suas dúvidas e desejos internos de ceder ao mal. 

    Tal temática: da dualidade do mal e do bem, da necessidade de se domar as forças irracionais da natureza (e do ser humano) se encontra presente desde os primórdios da humanidade. Para os gregos, tais forças irracionais eram representadas por criaturas bestiais como os Titãs, Ciclopes, Gigantes e Hecatonquiros. Sua contenção era necessária, daí a importância da ascensão de um deus que representasse e possibilitasse um caminho mais racional e comedido, apesar de ocasionalmente não conseguir manter essa postura. Tal deus é Zeus, que não só aprisionou essas forças bestiais, como também gerou a deusa da sabedoria, Atena, Diké, a justiça humana e foi pai das Musas, que representam o Pensamento e a Arte nas suas mais diversas formas. 

    Enfim, sejam nas dúvidas de Harry Potter sobre se na realidade pertence à Grifinória ou à Sonserina, seja no embate de Zeus com bestas antigas e no seu papel de progenitor da sabedoria, justiça e pensamento, encontramos aqui metáforas para esse contraste que existe em cada um de nós. Tentamos controlar nosso lado maligno e irracional, que se apresenta através de sentimentos como ira, inveja e violência, ao mesmo tempo em que buscamos alcançar uma “elevação espiritual”. 

    As histórias de Harry Potter seguem um padrão que, de acordo com Joseph Campbell (O Herói de Mil Faces), seria comum a quase todos os heróis das mais diversas culturas e mitos mundiais. 

    Campbell resume tais histórias da seguinte maneira: “Um herói se arrisca a deixar o mundo cotidiano e penetra numa região do sobrenatural e do fantasioso. Forças miraculosas estão à sua espera, e ele alcança um triunfo decisivo. O herói retorna de sua misteriosa aventura dotado agora do poder de auxiliar seus semelhantes humanos”.

    A aventura do herói é dividida em três etapas distintas: Partida, Iniciação e Retorno. Tais etapas estão presentes na história de Harry como um todo e em cada um de seus livros em particular, como descreveremos a seguir. 

    (A) Partida

    O herói é chamado à aventura: o herói, primeiramente visto no mundo cotidiano. Ele está iniciando uma nova etapa em sua vida. Um mensageiro pode ser enviado para anunciar o destino que chama pelo herói. Muitas vezes esse mensageiro parece ser uma figura pouco confiável.Tal descrição se encaixa perfeitamente ao início da saga de Harry: Harry Potter e a Pedra Filosofal. Ele se encontra no mundo trouxa (cotidiano), nas mãos dos “cruéis” Dursley, quando é chamado para estudar em Hogwarts (ganhando acesso ao mundo místico e sobrenatural). Inicialmente as cartas da escola são interceptadas pelos tios, até que Hagrid, o mensageiro, vem busca-lo. Por ser meio gigante, Hagrid não é considerado por todos, mesmo no meio bruxo, como uma pessoa confiável. 

    Esse movimento de sair do mundo cotidiano e entrar no mundo mágico é constantemente retomado nos livros da série, uma vez que Harry se vê obrigado a passar as férias com os tios. 

    Dentro desta etapa, Campbell aponta que o herói pode rejeitar o chamado da aventura, pelas mais diversas razões, mas, por mais que resista, vai acabar descobrindo que não tem escolha a não ser seguir em frente. No início, Harry não dá as costas ao mundo bruxo, mas no decorrer da série, ele tenta dar as costas à sua vocação de herói. Entretanto, as ocorrências ao seu redor o levam novamente a seguir o seu destino de herói, especialmente em HP e o Cálice de Fogo. Nesse livro, um torneio entre as escolas de bruxos da Europa será realizado, mas só alunos com mais de dezessete anos podem participar e Harry só tem quatorze. Ele serão selecionados pelo citado Cálice. Contudo, o Cálice aponta Harry como um dos participantes do torneio. 

    O herói encontra um protetor, um guia, que lhe oferece uma ajuda através de poderes sobrenaturais, freqüentemente sob a forma de amuletos.

    Como já falamos, Harry possui diversos protetores e guias, representados por Hagrid (sendo inclusive ele quem tirou Harry ainda bebê dos destroços da casa onde seus pais foram assassinados), Dumbledore (que determinou que Harry deveria ser criado por trouxas para sua proteção, e sempre lhe fornece os mais preciosos conselhos e ensinamentos), a professora Minerva (contraparte feminina de Dumbledore), seu padrinho Sirius e até mesmo seus amigos Ron e Hermione. Também são diversos os amuletos mágicos que Harry recebe desses protetores: Hagrid o ajudou a comprar seu material escolar de bruxo, em especial a varinha mágica e lhe deu sua coruja, Edwiges. Graças a Dumbledore, ele recebeu a capa de invisibilidade de seu pai. E um velho mapa, criado por Sirius e James Potter é essencial nas jornadas de Harry. Também no sexto ano, o novo professor de poções, Horace Slughorne o presenteia com uma poção de boa sorte, a Felix Felicis, que é de suma importância para Harry descobrir uma informação essencial sobre seu arquiinimigo. Também as Reliquias Mortais fazem parte desse arquetipo,, pois foram essenciais para a derrocada de Voldermort, especialmente a Varinha das Varinhas.

    O herói encontra a primeira entrada para o novo mundo. O protetor pode apenas levar o herói até a entrada, ele deve atravessá-la sozinho. O herói pode ter de lutar, inicialmente, com um guardião da entrada que está ali para impedi-lo de atravessa-la, ou supera-lo pela astúcia.

    O herói penetra na “barriga da baleia"; uma expressão tirada das lendas, como a história de Jonas, que representa "ser tragado pelo desconhecido".
    Cada história de Harry tem no seu clímax a necessidade de que Harry adentre sozinho uma entrada para enfrentar um inimigo desconhecido. 


    Em A Pedra Filosofal, ele precisa enfrentar um guardião representado por um cão de três cabeças, só assim poderá impedir Voldemort de colocar suas mãos na pedra e se tornar imortal. Para vencer o cão, ele usa música para adormece-lo. Ron e Hermione o acompanham e o ajudam nos perigos intermediários, mas é Harry quem enfrenta o vilão no fim da jornada. 

    Em O Cálice de Fogo, ele precisa decifrar o enigma de uma esfinge (tal qual Édipo) para alcançar a Taça do torneio entre as escolas. Contudo, a taça revela ser um portal que o transporta a um lugar inesperado, bem nas garras do inimigo. 

    (B) Iniciação

    O herói segue um caminho no qual continuamente é posto à prova.(O que, como pôde ser visto até aqui, é uma constante nas aventuras de Potter).O herói pode encontrar companheiros que o ajudem a passar pelas provas.(Representados freqüentemente por Ron e Hermione) e forças invisíveis podem também vir em seu auxílio.

    O herói é raptado, ou precisa empreender uma jornada à noite ou pelo mar.


    Como já foi apontado por nós, Harry foi transportado durante o torneio entre as escolas, caindo nas garras de Voldemort, sendo literalmente raptado pelo bruxo das trevas. 

    O herói enfrenta um dragão simbólico. Ele pode sofrer uma morte ritual, talvez mesmo desmembramento.Em cada aventura Potter enfrenta monstros diferentes, todos eles reflexos da maldade de Voldemort, que seria o verdadeiro dragão simbólico e contraparte maligna de Harry. Também sofre os mais diversos ferimentos (“desmembramentos”): emA Câmara Secreta, quebra o braço durante uma partida de quadribol e seus ossos são acidentalmente removidos por um feitiço malfeito; no mesmo livro, um gigantesco basilisco (uma cobra capaz de matar com o olhar), rasga com uma de suas presas o braço do herói. 

    No Cálice de Fogo, ele finalmente enfrenta Voldemort (o “dragão") de igual para igual, já que o bruxo das trevas recuperou sua força total, mas não sem antes sofrer “desmembramentos”: torce o pé em uma batalha com uma espécie de escorpião gigante e sofre um corte profundo no braço quando foi capturado para que seu sangue fosse usado no ritual de retorno de Voldemort. 

    Em as Relíquias Mortais, Harry chega mesmo a morrer e é recebido por Dumbledore em uma espécie de limbo, de onde Potter retorna para o duelo final com Voldemort.

    O herói é reconhecido por seu pai ou se reúne a ele.

    Harry sempre vivencia um profundo momento de contato com seus pais, como quando eles aparecem em um espelho mágico, na Pedra Filosofal, ou como imagens-fantasmas emitidas pela varinha mágica de Voldemort, em O Cálice. Também em O Prisioneiro de Azkaban, ele se encontra com Sirius, seu padrinho, ou seja, um substituto do pai, que o reconhece como “filho”. No final de As Relíquias Mortais, Harry reecontra todas as figuas paternas (e materna) que de uma forma ou outra influeciaram sua jornada. Reencontra Dumbledore no limbo, como já foi mencionado, assim como reencontra as formas espectrais de James, Lily, Sirius e Remus

    O herói torna-se quase divino. Ele ultrapassou a ignorância e o medo.

    A cada vitória alcançada, ele supera o medo, descobrindo que possuí uma força interna que não julgava ter. A "divinização" pode ser apontada como o já mencionado retorno de Harry do mundo dos mortos e pelo reconhecimento de Potter como seu mestre por um dos mais poderosos artefatos mágicos (A Varinha das Varinhas) 

    O herói recebe a última dádiva, o objetivo de sua busca. Pode ser um elixir da vida. E pode ser diferente do objetivo original do herói, pois ele se tornou mais sábio durante seu percurso.

    Em cada livro, ele recebe uma recompensa: em A Pedra Filosofal, recupera a pedra do título - algo que de fato produz um elixir da vida — ao derrotar Voldemort. Em A Câmara Secreta, as lágrimas de uma fênix curam a ferida causada pelo basilisco, impedindo que ele morra. Em O Prisioneiro de Azkaban, ele ganha um padrinho e conhecimento maior sobre os pais. No O Cálice de Fogo, é o vencedor do torneio, derrota sozinho, porém momentaneamente, Voldemort (para escapar dele), descobrindo assim que é capaz de lutar de igual para igual com o bruxo, tendo esperança de derrota-lo definitivamente.Em O Enigma do Principe, ele consegue informações essenciais que o auxiliarão a finalmente derrotar o Lord das Trevas. Em Relíquias Mortais, como mencionamos, ele se torna o mestre da Varinha das Varinhas, embora, abra mão do objeto após derrotar Voldemort

    (C) Retorno

    O herói empreende um vôo mágico de volta ao seu lugar de origem. Ele pode ser salvo por forças mágicas. Um de seus protetores iniciais pode ajudá-lo. Uma pessoa ou alguma coisa de seu mundo de origem pode aparecer para traze-lo de volta

    . Em A Pedra Filosofal, Dumbledore chega para resgatar Harry, inconsciente, do subterrâneo onde Harry se encontra. Em A Câmara, uma fênix é enviada para ajuda-lo. 

    O herói volta ao mundo cotidiano, atravessando de novo a passagem. Ele pode ter alguma dificuldade para se readaptar à sua vida original onde as pessoas não conseguem compreender o que vivenciou.

    Essa passagem ocorre em todos os livros de Harry, uma vez que ele sempre precisa retornar para a casa dos tios, onde definitivamente ninguém o compreende. E, ocorre quando Harry finalmente morre e retorna, sendo essa uma metáfora explicita do processo de mudança dele, onde, o menino morre para dar lugar ao homerm, capaz de, finalmente, derrotar seu antagonista. 

    O herói se torna senhor de ambos os mundos: o do cotidiano, que representa a sua existência material, e o mundo mágico, que significa seu íntimo.

    Harry compreende tanto os mecanismo de funcionamento do mundo dos trouxas quanto do mundo dos bruxos, mas é nesse mundo mágico que adquire as experiências que o tornam espiritualmente mais forte e maduro (o domínio de seu íntimo).

    O herói conquistou sua liberdade para viver como desejar. Superou os medos que o impediam de viver plenamente.

    O medo é, considerado pela autora, como o maior inimigo de Potter, maior até do que Voldemort, e são representados pelas figuras do dementadores, das quais falaremos adiante, Em O Prisioneiro de Azkaban, Harry aprende como dominar esse medo, decorrente do trauma da morte de seus pais, utilizando uma conjuração chamada Patrono. Apenas, após superar esse desafio, é que ele se viu capaz de prosseguir seu caminho de autoconhecimento (descobrir algo sobre o passado do pai) e de se perceber mais independente. 

    É interessante apontar aqui em que todos os livros da série, o herói se vê preso em uma caverna, que pode ser representada pelos subterrâneos da escola (em A Pedra), pela Câmara Secreta ou por uma passagem subterrânea que leva a uma mansão abandonada (em O Prisioneiro de Azkaban), ou mesmo pela caverna onde vai buscar um medalhão em O Enigma do Príncipe,ou a caverna metafórica da "morte" de Harry, em que ele foi à outro mundo, antes de retornar. Enfim, ele vive uma katabásis.Em O Cálice de Fogo, a caverna é substituída por um labirinto. Como Brandão aponta, a caverna simboliza a morte ritual - também citada por Campbell na jornada do herói. É como se a caverna fosse uma espécie de útero (da grande deusa e mãe Terra) onde o sujeito (no caso Harry) pudesse passar por um processo de crescimento espiritual, adquirindo experiência. Essa morte ritual leva a um novo nascimento desse “feto”, possibilitando-o iniciar uma nova vida (simbolicamente). O labirinto também envolve essa questão do nascimento, ainda mais quando visto sob a luz do mito do Minotauro, em que Brandão aponta a questão do fio de Ariadne como uma metáfora para o cordão umbilical. Sair do labirinto também é renascer. Todos nós adentramos continuamente em cavernas e labirintos simbólicos durante o percorrer de nossas vidas. Cada vez que sofremos uma perda ou passamos por uma crise, nos isolamos (física e/ou introspectivamente). Esse movimento é similar ao adentrar em uma caverna, para que possamos “renascer” novamente com mais força e experiência. Sofremos pequenas mortes e pequenos renascimentos durante toda a nossa vida. 

    Mas, por que o mito do herói e a saga de Harry Potter nos tocam tanto? O que essas histórias dizem para nós e dizem de cada um de nós?

    O herói é aquele que está começando uma nova saga, iniciando uma nova etapa de sua vida. Alguém que no início não conhece quase nada, se mostra dependente de outros e se sente incapaz de realizar qualquer coisa que seja. Mas, mesmo contra sua vontade, ele se vê obrigado a enfrentar desafios e encontrar forças para vence-los. Descobre-se mais forte e capaz do que supunha. E emerge dessa experiência mais maduro e experiente, com o “espírito mais forte”. 

    Tendo em vista o que foi acima descrito não somos todos nós heróis? Volta e meia iniciamos novas etapas em nossas vidas, nos sentimos incapazes, mas no fim descobrimos que é possível enfrentarmos os desafios, e não saímos mais fortes de cada experiência? É por isso que sempre torcemos pelo sucesso do herói, pois ele reflete nosso próprio sucesso (ou pelo menos nosso desejo de obtê-lo). 

    Talvez nosso maior desafio seja a saída da infância e o ingresso na vida adulta. Como Freud também aponta em Romances Familiares:

    “Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos os que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas”.

    O herói inicia sua jornada como uma criança, incapaz, sem nenhum conhecimento, necessitando da ajuda de protetores e guias, que podem ser consideradas como personificações de nossos pais. Ao enfrentar os mais diversos perigos e desafios, vai se tornando mais autônomo e independente, passa por uma morte ritual (a criança que éramos morre), para que seja possível iniciar uma nova vida, com mais sabedoria, como adulto. 

    Harry passa por uma jornada dupla: a jornada de herói e de adolescente, talvez por isso mesmo ele diga tanto de nós e tanto sucesso envolva a série. Potter, apesar de viver em um mundo mágico, é um herói como cada um de nós.