quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Por que Harry Potter é um Herói Universal? - Parte 02


Dentre os perigos enfrentados por Harry Potter no decorrer da série, dois merecem destaque: os dementadores e Voldemort.


Os dementadores são uma criação pessoal da própria Rowling.São criaturas mágicas que não possuem rosto e vestem mantos longos, que cobrem inteiramente seu corpo “cinzento, de aparência viscosa e coberto de feridas”. Dementadores “esgotam a paz, a esperança e a felicidade do ar à sua volta”, enfim se alimentam de tudo que é bom nas pessoas, tornando-as tristes e vazias. De acordo com a própria autora, tais criaturas são uma personificação de uma doença psíquica grave: a depressão. Se o sofrimento e a tristeza podem levar a uma maturidade, a depressão seria caracterizada por uma paralisação no viver. 

Estar deprimido poderia corresponder a estar no Tártaro, um dos três níveis dos Mundos Inferiores ou Hades (os outros dois seriam os Campos Elísios, espécie de Paraíso, e o Érebo, uma espécie de purgatório). O Tártaro propriamente dito seria o local de suplício eterno, o que nos remete a pessoas que se acham em situações de desespero que aparentemente não tem volta, tal qual pode ser caracterizada a depressão. Enfrentar os dementadores é enfrentar a si próprio, é encontrar uma saída do Tártaro, e superar essa paralisação no viver. 

Também os dementadores-depressão podem ser comparados ao Caos. A um caos interno da pessoa. Na mitologia, Caos é a personificação de um vazio primordial, “quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos do mundo”, enfim, é aquele espaço no qual os elementos do universo ainda estariam confusos e pouco claros, e que após uma certa organização, dariam origem a um novo universo. A sensação de caos faria parte da depressão: nesse momento, a pessoa se encontra em um estado confuso, se sente perdida e descentrada, contudo, diferente do caos mitológico e da sensação de caos dissociada da depressão, aqui, os elementos negativos estão evidenciados. Para enfrentar a depressão, a pessoa necessitaria perceber que seu micro-universo interno está desestabilizado, e que, ao conseguir superar sua paralisação, seria como se recriasse a si própria (um novo “micro-universo”). 

Mas, o grande inimigo de Harry Potter se encontra na figura de Voldemort. Assim como Harry contém em si características presentes nos mais diversos heróis das mais diversas mitologias, Aquele-que-não-deve-ser-nomeado possui características dos mais diversos vilões, enfim, Voldemort é a personificação do clássico Senhor das Trevas (como também é chamado pelos bruxos). O vilão deseja se tornar o Príncipe deste mundo, é representado como uma “força abstrata”, menos carne e sangue e mais energia sobrenatural, simboliza uma “degradação” (um colapso moral), pratica o mal por inveja e, principalmente tenta perverter as leis naturais, submete-las a seus desígnios (retratado em sua busca por imortalidade). 

O sonho maior de Voldemort não é dominar o mundo todo, tanto o dos trouxas quanto o dos bruxos, mas sim vencer a Morte. Ele sempre busca realizar tal intento das mais diversas formas possíveis, seja na tentativa de possuir a Pedra Filosofal, capaz de produzir o Elixir da Longa Vida, seja através da profanação do túmulo de seu pai, em O Cálice de Fogo, ou ainda através da maculação de uma criatura pura como um unicórnio, ao mata-lo e alimentar-se de seu sangue, como visto em A Pedra Filosofal.

Essa busca de imortalidade empreendida por Voldemort remete-nos a um antigo mito grego: a história de Sísifo. Sísifo era um rei de Corinto, que por duas vezes tentou enganar a morte. Em uma das vezes, ele aprisionou a própria Morte (em algumas versões consta que ele aprisionou Hades), em seu castelo. 

Enquanto a Morte (ou Hades) estivesse aprisionada, ninguém morreria. Por fim, ela foi libertada e Sísifo foi condenado à morte. Entretanto, o esperto rei pediu à sua esposa que o enterrasse sem os ritos funerários usuais. Chegando no Mundo Inferior, reclamou a Hades do procedimento da esposa, e este permitiu que o rei retornasse para punir a esposa. Contudo, o rei permaneceu na Terra até que foi capturado por Hermes e forçado a empurrar uma pedra para o topo de uma colina, mas, toda vez que alcança o topo, a pedra cai de novo, e ele novamente é obrigado a empurra-la para cima. 

Essa obsessão pela vida eterna é a essência da depravação do Senhor das Trevas. Tanto Sísifo quanto Voldemort desafiam a ordem natural das coisas e ambos são punidos por essa violação, um com seu castigo eterno no Tártaro, outro ao ser transformado em um bom tempo num ser menos que humano, tendo que habitar cobras e outras bestas similares para continuar vivo. 

Apesar do comportamento de Sísifo e Voldemort parecer imoral e insano, é muito mais comum do que imaginamos, especialmente em uma sociedade como a nossa em que a beleza (dentro de certos padrões estabelecidos), a juventude e o poder são, por muitos, os aspectos mais valorizados nas pessoas. Quantos não submeteram seus corpos às mais terríveis torturas e deformações (cirurgias plásticas) para tentar alcançar esse ideal, numa tentativa de enganar o tempo e atrasar a chegada da velhice e, fantasiosamente, da Morte? 

Mas, não apenas no aspecto estético tal comportamento pode ser observado. Voldemort é a personificação da deturpação da magia que, no nosso mundo, é nada mais nada menos que a Ciência. Enfim, ele representa uma evolução da ciência sem ética ou reflexão, em que o conhecimento é válido por si só e não por suas conseqüências. Mas, será que vale a pena construir um conhecimento sem sabedoria, que no fim mais prejudica que ajuda? Uma coisa é pesquisar a cura de doenças para tentar salvar vidas, outra é estudar bactérias para se criar armas químicas. Sem falar na polêmica envolvida nas pesquisas genéticas, em especial na possível criação de clones humanos. Muitas pessoas acreditam que tais clones poderiam ser uma forma de garantir sua imortalidade, esquecendo, contudo que uma pessoa é mais que suas características biológicas, sendo que os meios ambientes, culturais e históricos, além de outros fatores, interferem na constituição do sujeito. Uma cópia genética não é de modo algum uma cópia psicológica de alguém. 

O que Rowling parece questionar não é a evolução da tecnologia e da ciência, ela não prega a estagnação desses meios, a questão está em se refletir sobre eles, ter um olhar mais crítico sobre o assunto. Não é negar ou virar as costas para a ciência (ou magia), afinal, em seus livros tanto os heróis quanto os vilões utilizam mágica, a questão está em usar tanto a magia quanto a ciência com ética e responsabilidade. 

Enfim, por todas as razões apontadas neste trabalho, podemos afirmar que a saga de Harry Potter possui em si temas simultaneamente antigos e atuais, pois os mitos se constituem em algo eterno uma vez que dizem respeito à vivência humana, apenas mudam de roupagem, mas continuam presentes em nossas vidas, mesmo que não tenhamos consciência disso. 

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Junito Souza Mitologia Grega volume 1. 

__________ Mitologia Grega volume 3. 

CAMPBELL, Joseph O Herói de mil faces Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. 

COLBERT, David . O Mundos Mágico de Harry Potter Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

FREUD, Sigmund “Romances Familiares” In: Edição Eletrônica das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud IMAGO ELETRÔNICA. 

ROWLING, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 

__________ Harry Potter e a Câmara Secreta Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 

__________Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 

__________Harry Potter e o Cálice de Fogo Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 

__________Harry Potter e a Ordem da Fênix Rio de Janeiro: Rocco, 2003. 

__________Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 

__________Harry Potter e as Relíquias Mortais. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 

HarryPotter.com - http://harrypotter.warnerbros.com/

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Nota da Autora:

Este trabalho é apenas uma pequena parte das muitas referências existentes no texto da JK. Foi feito como trabalho final de um curso que fiz. Queria ter citado mais coisas, mas por falta de tempo e por limitação de tamanho precisei tirar algumas coisas.Recomendo que leiam os livros que usei como base, especialmente O Herói de Mil faces de Campbell.Outro livro que recomendo é "Fadas no Divã", de Diana e Mário Corso, que trazem relatos e análises de vários contos de fadas clássicos e modernos, incluindo Harry Potter. Nesse link, é possível perceber o ritmo das análises feita pela dupla Corso em torno das diferentes histórias de contos de fadas.

A imagem usada para ilustrar a página é da desenhista Mary Grandpre, ilustradora oficial de Harry Potter nos Estados Unidos. 

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